Um olhar pessoal desde Macau sobre as relações entre portugueses e chineses

Opinião de José Manuel Esteves, presidente da Associação de Médicos de Língua Portuguesa de Macau.

                                                      José Manuel Esteves, presidente da Associação de Médicos de Língua Portuguesa de Macau.

 

O território de Macau foi durante cerca de 450 anos uma das principais referências dos portugueses no Oriente e a principal porta de intercâmbio luso-chinês e sino-luso, condição que confere a actual Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) da República Popular da China (RPC) o seu carácter único. 

Macau, passados 20 anos do retorno da sua administração à China, caracteriza-se por ser hoje uma sociedade multi-cultural e multi-linguística, com arquitectura, gastronomia e forma de viver muito próprias, que a par dos inúmeros casinos, transformam este território numa das grandes atracções turísticas do continente asiático.

Embora mais de cem mil dos 680 mil residentes da RAEM possuam passaporte português, na realidade, a comunidade lusófona que aqui vive, entre os quais portugueses vindos mais recentemente, portugueses que aqui se estabeleceram há décadas, macaenses, nacionais de outros países lusófonos, constituem apenas 2,5% da população do território. 89% da população local fala como língua materna o Cantonense, e toda a jovem geração do território também e fluente em mandarim, a língua nacional da RPC. 

Muitos dos residentes têm as suas raízes familiares no interior da China, embora se encontrem aqui também muitos descentes de chineses ultramarinos, como por exemplo, membros da numerosa comunidade chinesa que outrora vivia em Moçambique.

O que significa para um português vir nos dias de hoje residir ou trabalhar em Macau?

Devo dizer que Macau desde a mais tenra infância constitui para mim uma terra mítica, que me habituei a conhecer pelos relatos e pelo álbum de fotos a preto em branco do meu pai, que aqui passara os primeiros anos da sua carreira militar, entre Novembro de 1951 e Fevereiro de 1956.

Quiseram as coincidências da vida que aos 58 anos, no dia 1 de Novembro de 2015, me coubesse a vez de navegar desde o Aeroporto Internacional de Hong Kong ate ao Terminal de Ferries do Porto Exterior de Macau para aqui começar uma nova fase da minha vida, ao serviço do Centro Hospitalar Conde de São Januário.

Não sendo a minha primeira vez a viver longe do território português por um longo período e a enfrentar o desafio de uma nova cultura e uma nova língua, ate então maioritariamente desconhecidas, foi com redobrada energia que me coloquei como metas principais, afirmar-me por duas vias: como profissional, com a obrigação de defender e honrar as qualidades da Medicina Portuguesa, e como pessoa que ser quer socialmente bem integrada na sociedade de acolhimento. 

Considerei, desde a primeira hora que esta seria uma oportunidade única de me enriquecer com o conhecimento de uma nova cultura e de novas línguas (no plural, obviamente, porque parti do principio que se o cantonense era imprescindível para o dia a dia, estar demoradamente num território chinês sem aprender a língua nacional, seria uma falta imperdoável).

Considero que o conhecimento mútuo entre as pessoas, a capacidade de entendimento das línguas respectivas, das nuances do pensamento, das tradições e da história, são as bases para os respeito e estima entre as partes, e a capacidade de um convívio e intercâmbio mutuamente proveitosos.

Na verdade, os meus primeiros amigos em Macau, a par de alguns portugueses que aqui se encontravam há muito radicados, foram os meus colegas de trabalho vindos do interior da China na mesma altura (falávamos em inglês entre nós), instalados no mesmo hotel que eu, enquanto aguardávamos que as autoridades da RAEM nos atribuíssem casa para morarmos. E a primeira lição que aprendi foi que sem barreira linguística, as pessoas são afáveis, amistosas, e desejosas de estabelecerem laços de amizade com estrangeiros de outras longitudes. 

A título de curiosidade, na minha primeira vez que me desloquei a Qindao, província de Shandong, no Norte da China, junto ao Mar Amarelo, de onde é natural um dos meus colegas de serviço, onde fui calorosamente acolhido pela respectiva família durante os dias que la estive, fui solicitado como modelo para fotos com raparigas locais que também garantiam nunca terem tido a oportunidade de contactar directamente com um ocidental. 

Hoje, conto igualmente com muitos amigos entre a comunidade chinesa de Macau. Além disso, no bairro em que moro, as pessoas conhecem-me e cumprimentam-me, tanto nos restaurantes como nas lojas.

Mas a integração não será fácil se não for ultrapassada a barreira linguística. E o desafio da aprendizagem das línguas não tem sido de pouca monta. O cantonense foi classificado por um site inglês como a língua mais difícil de aprender para os anglófonos. 

Trata-se de uma língua tonal, em que o mesmo som com uma entoação diferente significa uma palavra diferente. Como se fosse uma escala musical. Erramos o tom, no mínimo sai disparate. E no cantonense são nove tons. Qual a solução? Perseverar, praticar sempre que possível, não nos rendermos a frustração do insucesso (eu a achar que pronunciei os tons corretamente e o meu interlocutor de olhos esbugalhados a não entender o que me esforço por dizer…). 

Vem com o tempo, o estudo e a prática, aprender o vocabulário, ter amigos falantes nativos do Cantonense com paciência para nos corrigirem. Um dia descobri que nas consultas já conseguia sozinho entender a resposta dos doentes antes de ter a resposta traduzida, depois já ia sendo capaz de fazer eu as perguntas por mim próprio, usar a língua local no bloco operatório, durante as operações, ir as compras, aos restaurantes, apanhar o táxi, etc. 

Desafio seguinte: ler e escrever

Em Macau e em Hong Kong escreve-se o Chinês Tradicional, e são apenas 90 mil caracteres, alguns com mais de uma dezena e meia de traços. Tranquilizaram-me os meus amigos, que eles próprios não sabem de cor mais de 10 a 15 mil. Continuo disciplinadamente a praticar a leitura diárias de textos em chinês, mas ainda me encontro longe desse número. 

Ultrapassada esta barreiras, outros desafios se colocam, nomeadamente iniciar a aprendizagem do Mandarim e, em simultâneo, da escrita do chinês simplificado. Mais fácil, uma gramática igualmente simples, e apenas quatro tons.

Devo reconhecer, que para os meus amigos chineses, que aprendem o nosso Português, o desafio não se afigura menor. Os tempos verbais e outras complexidades gramaticais das línguas latinas, a par das nossas particularidades fonéticas, fazem com que também eles procurem apoio de nativos lusófonos para a aprendizagem da língua. 

Vencer barreiras linguísticas e culturais e estabelecer pontes e novas amizades pesam, embora as dificuldades de comunicação, traz em si mesmo um valor acrescentado para o próprio e para a sociedade. Importa reconhecer que a cultura chinesa, em si mesma, esta imbuída de uma tolerância própria, não impõe conceitos de superioridade ou de obrigatoriedade de “conversão” dos estrangeiros aos seus valores: se me respeitares, eu respeito-te. 

Sem sombra de dúvidas que todo o esforço e dedicação investidos na superação destes desafios compensa sempre. 

 

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